Miguel Carneiro o Duplo Homem de Ferro

Miguel Carneiro, o primeiro português a fazer um Duplo Ironman contou-nos como foi realizar uma prova com 7,6km a nadar, 360km a pedalar e 84,4km a correr.

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Miguel Carneiro o Duplo Homem de Ferro

Dei início a esta minha aventura no triatlo em 2008, já participava em algumas corridas, só me faltava mesmo comprar uma bicicleta de estrada e melhorar a natação.

Quando ouvi falar do triatlo fiquei logo apaixonado, só pelo simples facto de combinar três modalidades, mais completo e desafiante do que qualquer outro desporto que tinha praticado até a data.
Em 2009 ingressei na equipa do Clube de Praças da Armada, o qual ainda represento, que tornou possível participar em mais competições a nível nacional e aumentar este meu gosto pela modalidade.

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Quando me iniciei no triatlo não tinha a mínima noção das diferentes distâncias que existiam nem tão pouco pensava ser possível existir algo tão grandioso como a distância Ironman. Relembro-me que a primeira vez que ouvi falar desta distância custou-me a acreditar e passei o dia inteiro a pensar se realmente seria humanamente possível alguém fazer algo assim. Na altura para mim fazer uma meia maratona já tinha uma grande dificuldade e requeria bastante tempo de treino, mas a verdade é que estes homens de ferro existem e após 5 anos, acabei por me tornar orgulhosamente um deles.

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Em 2014 optei por um desafio ainda maior do que o Ironman, uma competição de 3 dias por etapas conhecida como Ultraman e com os mesmos segmentos do triatlo.
Foram 10km de natação, 420km de ciclismo e 84,4km de corrida pelas magníficas paisagens do Pais de Gales.

A verdade é que quanto maiores eram os desafios e a sua dificuldade, em vez de sentir aquele receio de treinar, o de não conseguir terminar, de pensar que não consigo e pensar que nunca mais iria fazer algo assim, comigo acontece simplesmente o contrario, nunca acredito que exista algo que não consiga fazer e antes mesmo de terminar já penso em quando será a próxima, termino sempre com a sensação que estou longe dos meus limites, é como uma droga que me invade o corpo e que se multiplica km após km.

Migguel Carneiro no Ultraman
Migguel Carneiro no Ultraman

O Ultraman é uma competição com um elevado nível de dificuldade mas tinha terminado a pensar que ainda estava longe dos meus limites, e como tal a seguir tinha que vir outro grande desafio, pois a vida é feita de pequenos desafios e são estes que fazem a vida fazer sentido e ao superá-los, sentimo-nos realizados.

O Duplo Ironman

Tudo começou com algumas pesquisas na internet, entre as quais achei o duplo Ironman, semelhante ao Ultraman mas desta vez tudo de seguida sem paragem de cronometro.
Ainda mal tinha acabado de ler e já estava a ligar entusiasmado ao meu irmão a contar o que tinha achado, ele apenas perguntou se eu achava que o conseguia fazer e respondi que sim, foi então que ele disse, “então vamos lá”.  Por mais difícil que seja o desafio a que te propões quando tens alguém que acredita em ti e te apoia, tudo se torna simples e mais fácil.

A fase seguinte foi encontrar alguém que me conseguisse preparar da melhor maneira para poder vir a ter sucesso neste grande desafio, desafio este nunca feito por nenhum português e por muito poucos no mundo inteiro logo a informação relativa a métodos de treino fossem muito escassos.
Comecei a trabalhar com o Pedro Quintela, um grande treinador e grande referência no triatlo de Longa distância e logo desde o início me fez sentir que acreditava tanto no meu trabalho quanto eu acreditava no dele como treinador.

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No inicio do ano tive uma lesão (Esporão no calcâneo e fascite plantar) que me condicionou bastante os treinos de corrida durante todos os meses cruciais de preparação para o desafio. A lesão em sintonia com o desgaste do treino e a carga horário no trabalho, que se intensificou nos mês e meio antecedente ao desafio, fizeram grande parte do trabalho feito até então não ter o efeito planeado, tendo o treino mais longo de ciclismo sido apenas 250km e a corrida mais longo um trail de 60km, ambos apenas uma vez.

Para colmatar a impossibilidade de treinar corrida e minimizar os danos no dia do Duplo Ironman, decidi alterar o meu regime alimentar com o apoio do João Gomes e iniciando treinos de preparação física e fortalecimento muscular no Crossfit Almada. Vi logo o meu rendimento a aumentar bastante, permitindo-me no dia do desafio fazer todo o Duplo Ironman sem qualquer lesão, cãibras ou dores musculares.

7,6km a nadar, 360km a pedalar e 84,4km a correr

Depois de concluído e analisado posso dizer que além de ter sido o maior desafio que alguma vez fiz, foi sem dúvida o que me diverti mais. Além dos 7,6km de natação, os 360km de ciclismo e os 84,4km de corrida, de estar num campeonato do mundo perante os melhor e mais resistentes atletas da modalidade, e das mais de 27h de prova, houve uma série de situações, sentimentos e emoções que marcaram e muito este desafio.

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A natação

Eram 16 voltas que no total perfaziam 7,6km no lago Senvage.
Tinha planeado parar uma única vez aos 3,8km, existia uma plataforma onde podíamos receber apoio externo (hidratação e alimentação).

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Um dos episódios mais marcantes e bonitos deu-se logo no inicio da natação.
O apoio na plataforma era feito pela minha namorada Lies, que no momento se encontrava bastante nervosa com a competição, e com o objectivo de a tranquilizar parei aos 1,9km. Ela estava diante de mim com um gel numa mão e a isotónica na outra pergunta nervosa, “o que queres? O que queres?”, eu levanto.me calmamente, dou-lhe um beijo e respondo, “é tudo o que preciso” e sem mais conversa volto à natação. Reparo que ela fica perplexa no meio do pontão e o público todo a aplaudir e a bater palmas, e como eu tencionava ficou claramente mais tranquila.

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Fiz outra paragem como planeado aos 3,8km e os seguintes 3,8km foram feitos de seguida sempre a um ritmo confortável e controlado, sem grande dificuldade.

O ciclismo

No ciclismo e na corrida em cada volta existia uma zona de tendas destinadas ao apoio, onde se encontravam os membros das equipas dos atletas, e todo o apoio logístico era unicamente feito lá.

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360km em 72 voltas

Passando de um dos momentos mais bonitos para o mais difícil e complicado. Por volta dos 100km de ciclismo, a cerca de 6 horas do início, comecei a sentir fadiga nas pernas, fadiga esta que era preocupante visto ainda estar no inicio. Com isto perdi completamente o foco e a minha cabeça começou a divagar, a funcionar negativamente, a pensar no que ainda teria pela frente, no cansaço que só iria piorar no decorrer do desafio, o percurso de ciclismo que era muito ventoso e irregular, e como se não bastasse as duas maratonas para terminar. Foi um misto de pânico e medo em dezenas de pensamentos a atropelarem-se na minha cabeça num espaço de segundos, que por mais que a abanasse não me conseguia livrar deles.

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Quando passei na zona de apoio parei a explicar o que se tinha passado e enquanto falava com a minha mãe, o Luis Melato puxou-me as meias de compressão para baixo e começou a massajar as pernas com um gel, assim que ele terminou puxei as meias para cima, sentei-me na bicicleta e senti-me como novo e mais forte, porque mais uma vez não foram os meus pensamentos que ganharam a batalha mas sim a minha força e vontade de vencer.

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O resto do ciclismo correu bastante bem, o publico era incrível, ouvia gritar Portugal e o meu nome por todo o lado, e a minha equipa de apoio era tão incrível que me faziam sorrir voltas e voltas a fio. Terminei o ciclismo perto da meia noite que era muito perto do tempo previsto.

A corrida

Iniciou-se então as 50 voltas de corrida que no total correspondia a duas maratonas.
Os primeiros 17km de corrida correram bem, após isso comecei com soltura que me obrigava a ir à casa de banho a cada volta. Junto ao receio de desidratar agravou-se a situação com as temperaturas a baixarem bastante durante a noite, o que fazia com que cada paragem de segundos fosse o suficiente para ficar a bater o dente. Durante muito tempo a corrida baseou-se na ida ao wc, correr 500m a tremer de frio para aquecer, depois 1300m a correr quente para parar novamente para ir ao wc. Foi assim a noite toda até o Pedro me dizer para beber apenas Coca Cola.

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Os últimos 50km foram feitos apenas a Coca Cola, sem qualquer tipo de sólidos ou outras bebidas, até que fui melhorando ao longo do tempo e conseguindo correr 2, 3 e 4 voltas seguidas. Por volta das 9 da manha o sol já aquecia e consegui tirar as luvas, os casacos e todas as protecções que tinha contra o frio, mas ainda se via os campos brancos da gélida noite que tínhamos passado.
Nessa manhã e durante a corrida, um grupo de jovens, que nos estiveram a apoiar no dia anterior até bastante tarde, estavam lá novamente, incansavelmente a bater palmas, e quando passávamos faziam em grupo a onda. Numa das voltas passei para o lado de fora das fitas e juntei-me a eles para fazer a onda ao atleta que vinha atrás de mim, foi um momento único e muito divertido que os deixou super contentes. Voltei à corrida e o atleta, a quem tínhamos feito a onda disse-me: “O que acabaste de fazer com aqueles miúdos vai ficar para sempre na memória deles.” Isto deixou-me bastante feliz e na verdade acho que pelo menos na minha vai permanecer para sempre.

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No fundo foram momentos que serviam para quebrar a rotina da competição e a monotonia das tantas voltas em circuito que tínhamos que dar e que acabaram por ter um gosto muito especial.

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Foram 49º voltas num sentido e para terminar uma ultima no sentido inverso, nesta volta era permitido levar os elementos da equipa connosco, então desfilámos com a bandeira de Portugal cruzando-nos com os atletas que ainda se encontravam em prova, onde me iam felicitando.

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Nos últimos metros da meta era-nos posto uma coroa ao pescoço com a qual passamos pelo pórtico de chegada, e é ai que vem um misto de sensações, tantas e tão boas, um feedback de todos os meses de treinos, de toda a força que me deram nesse período, de tudo o que se passou nas horas anteriores desde o tiro de partida que eu gostava de conseguir transmitir e não dá, e pensei que era dedicado a todos os que me apoiaram e a todos os que mesmo antes de eu a ter terminado já sabiam que eu o conseguia.

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A Americana

Umas horas após terminar o Duplo Ironman, não resisti e voltei novamente no percurso, a atleta americana estava prestes a terminar, e eu e a Lies corremos ao seu encontro para a apoiar, pegamos na bandeira Americana e percorremos os últimos metros da sua prova com ela deixando a completamente emocionada.

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O fim de uma aventura e o ínicio de outra

Estava feito o objectivo a que me tinha proposto e tal como disse anteriormente, ainda não tinha terminado e já estava a pensar no próximo, que vira certamente para breve e de momento encontro-me à procura de possíveis patrocinadores, que se juntem a mim numa grande aventura.

Existem muitas histórias e emoções por detrás de um desafio desta dimensão, muita coisa acontece e existem valores muito maiores do que simplesmente correr e ganhar, um grande carinho e amizade une todos os atletas em prova, para mim todos são fantásticos campeões. Um grande obrigado a todos os que me apoiaram, a todos os que seguiram o meu desafio nos últimos meses e que com as suas palavras me deram força para treinar dia após dia, um especial obrigado também ao Clube de Praças da Armada que tornou tudo isto possível.