DURÃO FALA-NOS DO TOR DES GEANTS, 330 KMS DE SUPERAÇÃO

Paulo Durão a cruzar a linha de meta
O Seu nome é Paulo Durão, da equipa Viseu Trail, residente em Viseu e tem 46 anos, e OPraticante.pt esteve à conversa com ele sobre a sua participação no “Tor Des Geants“
Começou por nos dizer “Sempre fui uma pessoa muito ativa que sempre que possível jogava futebol, ia à piscina, jogava ténis entre outros desportos.
Com o passar dos anos as pequenas lesões e mazelas começaram a ser uma constante!
Em 2015 surgiram as primeiras corridas pela cidade com os amigos e rapidamente percebi que a dinâmica era saudável, de certo modo mais fácil, pois podia correr quando queria sem depender da disponibilidade de outros!“
Página do evento
Fonte: Henrique Dias // OPraticante.pt
Fotos cedidas pelo atleta
Da estrada aos míticos três dígitos do trail
“As corridas em estrada foram apenas o inicio. Em 2016 fiz o meu primeiro trail, 21km, aqui em Viseu, e não mais voltei à estrada…
O ambiente, a camaradagem, a natureza, a beleza paisagística, a riqueza da fauna e da flora que se sente, respira e nos envolve num trail fez com que depressa me apaixonasse pela modalidade e procurasse sempre novos desafios!
Em 2017 já participava em ultras (provas com cerca de 50km) com presença, entre outras, na prova de Sicó, Piódão, Serra D’Arga e Amigos da Montanha.
No ano seguinte já me aventurei nos míticos 3 dígitos, endurance Trail, provas com mais de 100km. Participei em Sicó, São Mamede e Marão!
As sensações e vivências eram maravilhosas, cada prova com as suas características e dificuldades, mas sempre com bom ambiente, entreajuda e camaradagem!
Surge então a vontade de experimentar algo lá fora e fui até Espanha, participei no ‘Desafio Somiedo’ que se localiza próximo dos Picos da Europa.
Mais uma vez fiquei deslumbrado…a cada vez que elevava a fasquia e me superava, coloquei sempre um obstáculo maior como meta seguinte.
Fui de seguida aos Pirenéus em 2019 e participei na prova Mitic (112km com 9700D+) do Trail de Andorra.
A dureza da prova, a beleza paisagística, a simpatia dos locais, a organização excecional da prova fizeram desta a ‘minha prova’ ate então.
Pensei ir mais além e sonhava com o UTMB (Ultra Trail Mont Blanc) em Chamonix (França), uma prova nos Alpes que passa por três países; França, Itália e Suíça, designada como a meca do trail mundial, pois atrai todos os anos os melhores atletas do mundo e reúne cerca de 12000 atletas distribuídos pelas várias distancias cronometradas que teme.“
UTMB é realmente uma prova de sonho
“Decidi então iniciar-me nas 100 milhas (provas com cerca de 165km) e em Portugal participei no Estrelaçor 180 km e no TPG (Trans Peneda Geres) como preparação para a presença no grande palco mundial.
O UTMB é realmente uma prova de sonho em que apesar das dificuldades se consegue fazer a prova sempre a ‘sorrir’. Assim foi a minha experiência no UTMB.
Um percurso fantástico, técnico, com muito single track, a paisagem é lindíssima e varia consoante a zona que se percorre, os locais são fontes de energia inesgotáveis que nos apoiam ao longo de todo o percurso.
A organização da prova funciona na perfeição e sentimos que temos sempre todo o apoio necessário. Uma prova de excelência que todo o praticante aspira um dia lá chegar.
Eu tive a sorte de viver esse sonho em 2021!
Saí de Chamonix com vontade de regressar!
E é então ao falar com amigos, ao ver e rever vídeos na net que me confronto com ‘a prova de trail mais dura do mundo’, o “Tor Des Geants”.
“Tor Des Geants” é uma prova nos Alpes Italianos, cronometrada com inicio e fim em Courmayeur, no Valle D’Aosta, na Itália.
De facto, a prova rainha desta organização são os 330km com um acumulado positivo de 24000m em que o percurso é circular e percorre os limites da região por entre as vias pedestres existentes, nomeadamente a 2 e a 3.
Quanto mais leio e vejo mais vontade tenho de ir, mas depende ainda de um sorteio pois as inscrições não são diretas e sujeitamo-nos à nossa sorte.
Finalmente recebo a confirmação que poderei participar na edição de 2022!“
Planear a participação e o inicio da aventura no “Tor Des Geants”
“Delineie o ano de acordo com o “Tor Des Geants” participando apenas no “OH Meu Deus” na nossa fantástica Serra da Estrela. Mais uma prova de 100 milhas míticas que temos em Portugal.
Mas a cabeça, o pensamento não saía do “Tor Des Geants”… a ansiedade, as duvidas aumentam a cada dia que passa, mas a vontade esta lá, quero viver o TOR.
Chegado o dia, Domingo 11/09 pelas 10h da manha, na linha de partida dou comigo a pensar como é que iria conseguir completar aquele monstro de percurso, onde menos de metade dos participantes conseguem chegar à meta no Jardin de L’Ange.
Tinha a minha família comigo, sabia que tinha todo o apoio de quem tinha ficado por cá, não podia fraquejar.
Chegou então a elite para a frente do pelotão e estava tudo pronto para o inicio da grande aventura.
A ansiedade era grande, as duvidas maiores, tinha medo, estava emocionado, mas eis que se dá a partida e agora vai ser sempre em frente.
Esta prova tem 6 bases de vida onde temos a possibilidade de ver a nossa equipe de apoio e eu era um felizardo, pois eu tinha a melhor do mundo!
Na minha cabeça eu dividi a prova em 7 segmentos e sabia que para chegar ao fim teria inevitavelmente de superar um de cada vez, com muita calma.
Apos 9:30h de prova ao chegar ao primeiro apoio estava feliz, radiante de ver os meus familiares. Contava-lhes como a prova tinha tanto de belo como de difícil.
As paisagens deslumbrantes, com o Monte Bianco sempre a olhar para nós, descidas estonteantes sem fim, e assim foi superar os primeiros 3 cumes.“
O “Tor Des Geants“ era extremamente difícil
“Dei-me conta que estava dentro dos primeiros 40 atletas a chegar aquele ponto e logo ali partilhei com a minha equipa que não ia conseguir continuar com aquele ritmo!
Seria impossível fisicamente aguentar ate ao final. E logo ali tomei a decisão de abrandar e desfrutar da prova, da beleza da região, das gentes, dos costumes, da gastronomia, de tudo bom que por ali existe.
Chegado ao segundo ponto de assistência já tinha percebido o porquê da elevada taxa de desistência nesta prova.
De facto, tivesse eu tentado manter o ritmo, não teria passado dali provavelmente.
Neste segmento percorremos 56km com 5020D+ passando apenas 3 cumes no parque Grande Paradiso.
A prova era extremamente difícil e eu estava nos meus limites.
Tinha dúvidas, tinha medo, estava cansado, as unhas dos pés já estavam negras, tinha queimaduras na cara, nos braços… e ainda faltava tanto.
Tentei dormir mas não consegui…o barulho, a claridade, o desassossego, não sei…sabia era que tinha que andar e assim continuei para mais um troço.
Pensava eu que seria o mais fácil, pois eram 46km com ‘apenas’ 2600D+. Pois bem, o problema foi mesmo descer o Col Champorcher dos 2800+ até à base de vida em Donnas a 385+.
31km numa descida louca onde passamos por locais incríveis, aldeias típicas transalpinas de beleza singular.
Cheguei no inicio da noite e depois de alguns miminhos e carinhos por parte de todos, lá me deitei e consegui dormir 1 hora.
Seguia-se agora o 4 segmento, o mais difícil, 57km com 6060D+. Foi subir até mais não, degraus, trilhos, estradões, tinha de tudo mas era sempre a subir!“
“A melhor ‘polenta’ que comi até hoje”
“Até que, e sem me dar conta, estou num cume, no topo do mundo, via o Monte Rosa (coberto de neve), tinha uma visão privilegiada dos alpes, montes, lagos, cumes, e também o Rifugio di Coda.
Lindíssimo, a 2800+ de altitude, a apoiar quem passa, com gente humilde a receber-nos, a tentar ajudar, encorajar…, mas nem sabia como dali sair…estava exausto, cansado, sem forças, ofegante, e ao ritmo que estava a andar não ia conseguir cumprir com o objetivo que tinha delineado para estar com a minha família.
Mas depois de algum descanso lá continuei. Fiz mais uma descida e outra subida e lá cheguei ao Rifugio della Barma.
Gente incrivelmente motivadora, bem-disposta e a servir a melhor ‘polenta’ que comi até hoje.
E lá fui de novo pois o tempo passava. Atravessei mais uns cumes e quando chega a noite ainda não estava na base de vida como planeado. Estava 12km atrasado!
Estava outra vez triste, dorido, cansado, com vontade de parar. Decidimos então parar e tentar dormir numa tenda ali improvisada.
Estava quase com 3 dias de prova e tinha dormido apenas 1 hora. Ainda me deitei, mas a festa era tanta, com musica, com barulho que decidi ir, pois ali não ia descansar.
Foi incrivelmente difícil chegar à base de vida, mas consegui. Assim que cheguei aterrei num colchão de ginásio e dormi cerca de 1 hora. Que bem que soube.
De seguida tomei banho e fui comer. Depois tratei dos pés e fiz uma massagem. Que bom.
Tanto carinho de desconhecidos, que estão ali apenas a ajudar. Os chamados ‘volontors’, voluntários do TOR. Gente de coração grande e bom.“
As previsões eram de muito frio nos cumes
“Voltei a comer e pus-me a caminho de novo, em busca da 5 base de vida. Seriam apenas 30km mas com 3250D+. A previsão era de chuva e frio nos cumes.
Saí pela manhã, de impermeável e ia mais motivado, cheio de vontade e saudade de ver a minha equipa de apoio, se corresse como planeado iria estar com eles 2 vezes, ao almoço e ao final do dia.
Correu lindamente, subi o Col Pinter e desci ao Valle Champoluc e lá estavam eles todos contentes de me ver. Comi e voltei a carga e o no final do dia lá nos encontrámos na penúltima base de vida.
Afinal não tinha chovido, mas estava nublado e não deu para ver o “Matterhorn” na Suíça.
O corpo estava destruído, mas a vontade estava lá, queria continuar, queria vencer o percurso, queria muito ser gigante.
Tomei banho, comi e dormi 1 hora. Estava agora a chover, mas tinha que sair.
As previsões eram de muito frio nos cumes. Lá fui. A cada passo que dava sentia-me mais fraco, mas lutava para não parar.
No meio da escuridão dei conta que o meu progresso estava a ser quase nulo…e sentei-me a olhar para o vazio!
Vi dois atletas que passaram por mim ofegantes, sempre a andar e eu ali parado. Vamos lá pensava eu, descansas no próximo ‘control point’.
Após chegar tomei 2 chás cheios de açúcar e baixei a cabeça, passei pelas brasas, mas dei conta que todos os outros estavam bem mais vestidos que eu.
Vesti então toda a roupa que trazia, térmica e impermeável pois afinal estariam cerca de -4oC e eu não me estava a dar conta.“
Pela frente o Col Malatrà nos seus imponentes 2990m
“Acompanhei então um francês e chegámos ao abastecimento seguinte. Estava a ficar de manhã e ia agora para o refugio mais alto da Aosta, quase a 2900m de altitude.
Uma zona linda, verde, com os cumes cinzentos, o céu estava azul de novo, fazia sol, mas ainda tínhamos mais 3 subidas e descidas para fazer.
Estonteante, a subir e a descer, sempre vertiginoso. Mas bem, consigo chegar a Ollomont, a ultima base de vida.
Faltava um segmento, a meta estava ali… 50km com 4300+, já não parecia nada! Comi, tomei banho, fiz massagem e dormi mais 1 hora! Estava ansioso e sai rumo a meta!
Faltavam 2 subidas e 2 descidas, mas tinha que subir quase aos 3000m para passar o Col Malatrà.
A primeira subida correu bem, mas como começo a descer percebo que vou a dormir em pé!
Era a quinta noite e teria dormido apenas 4 horas… ia a deambular pelo trilho abaixo e temia pelo meu bem-estar…. Enfim, chego a um abastecimento e lembro-me de me deitar num banco e desliguei!
Devo ter dormido 2 horas…comi e meti-me no trilho outra vez! Mas continuava cansado, com sono, a deambular e com vontade de dormir!
Sabia que no abastecimento seguinte havia camas e decidi parar e descansar…. Descansei mais 3 horas…
Afinal tinha agora pela frente o Col Malatrà nos seus imponentes 2990m, uma “via ferrata” super perigoso que exigia todo o meu discernimento.
Entretanto já era de dia de novo e coloquei como objetivo chegar ao desejado pórtico da meta em Courmayeur nessa tarde. Passo a passo, superei o Rifugio Frassati, o Col Malatrà, desci e subi ao ‘Pas Entre Deux Sauts’, desci ao Rifugio Bertone e continuei a descer até a meta!“
“Tor des Glaciers”, 450km será para mim?? O futuro o dirá…
“Era sexta feira, 16:29h, cheguei emocionado, afinal tinha conseguido, abracei os meus, as lágrimas caiam, os locais também estavam emocionados, que alegria.
Indescritível. A emoção, a alegria, as dores, a realização de um sonho.
Fotos, congratulações, dos meus, dos locais, dos organizadores, que festa!!
Digno de gigantes!!
Agora era descansar!
Infelizmente depois de passar o Col Malatrà, formou-se uma tempestade e a neve impediu a travessia fazendo com que a organização tivesse que resgatar os atletas que estavam no Reifugio Frassati.
Ainda assim, passaram a meta 408 atletas dos cerca de 1000 atletas em prova.
Eu, terminava a prova no posto 243, com 126h27min. Mais de 5 dias na montanha.
Fantástica, dura, bela, fria, quente, rejuvenescida, calma, tranquila, brilhante.
Foi difícil, foi duro, vai perdurar na memória. Valeu muito a pena!
Fizeram-nos uma festa de despedida como nunca tinha vivido, todos passam no palco, todos são estrelas, todos são gigantes.
Fica a vontade de lá voltar.
Têm também o “Tor des Glaciers“, 450km em volta do Valle D’Aosta, será para mim??
O futuro o dirá…“