José Estrangeiro com uma vitória sofrida no Pure Triathlon 226

Fiz a minha estreia na distância Ironman (que para quem não sabe, consiste em 3,8km de natação seguidos de 180km de ciclismo e 42km de corrida para terminar; tudo isto seguido), exactamente há um ano atrás.

Foi uma estreia engraçada, mas onde sofri de problemas gástricos na corrida logo aos 10km que me levaram a arrastar-me até à meta nos 32km restantes, o que me condicionou a hipótese de lutar por um lugar no pódio, mas que acima de tudo deu-me uma preciosa lição sobre o que é o ironman.

Apesar de já contar com inúmeras provas longas nas pernas, não estava preparado para o que ia encontrar nesta distância. A distância ironman é mágica, literalmente! Não pelas distâncias em si, nem tão pouco pela dureza que o percurso possa ou não ter, muito menos pelas horas que demora .É mágica porque nos leva numa viagem quase que espiritual com o nosso corpo. Leva-nos a sentir coisas que nunca antes tinhamos sentido, leva-nos a experiênciar todo o tipo de sensações ao longo da prova, fazendo com que nos sintamos numa autêntica montanha russa em que viajamos entre aquela sensação de nos sentirmos fortissimos, quase que imbativeis, e a sensação de incapacidade que nos faz olhar para o que ainda falta com o maior dos desesperos, com uma velocidade inexplicável! Tão depressa estamos no topo do mundo como no momento a seguir nos arrependemos mil vezes de nos termos metido em tamanha estupidez!!

O ironman é uma luta contra o nosso corpo, e um teste à nossa mente. É um teste à força de vontade e ao querer.

Apesar de tudo isto, o ironman não deixa de ser uma estupidez! Levamos o nosso corpo a um extremo de fadiga e dôr muscular, que é inimaginável e imcompreensivel para o comum dos mortais… Assim, após o primeiro ironman, disse a mim mesmo que tão cedo não me iria meter em mais nenhuma maluqueira destas!

Contudo, apesar de essa minha promessa, aquando da planificação desta época 2015 com o meu treinador, decidimos incluir um Ironman no calendário; estava como hipótese e pendente de como me sentiria ao longo da época, mas estava lá…

A meio da época, após uma terrivel experiência no Triathlon Vitoria-Gasteiz (distancia half ironman) e depois de, mais uma vez, ter de me arrastar durante a corrida (ao menos aqui foram só 21km), decidi que não tinha disposição mental para preparar e fazer um ironman. Cheguei à conclusão que o melhor era manter-me pelos half’s do que me meter novamente numa aventura para a qual não me iria conseguir focar a 100% nem teria a vontade suficiente. Foi assim abortada a missão ironman 2015….

No fim-de-semana de 17 e 18 Outubro, fui a Maiorca competir num half. Era a prova principal deste final de temporada, aquela que vinha preparando há algum tempo, e onde queria fazer um grande resultado. Jogava praticamente tudo em Maiorca; o investimento tinha sido grande, e o resultado iria condicionar (se conseguisse ou não um cheque chorudo) se terminava a época aí, ou se fazia mais uma viagem para competir.
Infelizmente as coisas não correram como desejava, e a meio da natação acabei por perder o grupo da frente, saindo a 1min de um grupo que contava com uns 15 atletas. Acabei por ter de fazer todo o ciclismo sozinho, sem quaisquer referências, perdendo assim muito tempo para os lugares cimeiros. Na corrida ainda consegui recuperar alguns lugares, mas pouco havia a fazer… Terminava assim em 9º uma prova na qual senti que estava num bom momento de forma, mas que infelizmente essa forma não se traduziu no resultado esperado.

Via-me assim, sem mais oportunidades competitivas para esta época, e com um sabor amargo na boca. Ninguém gosta de terminar a temporada com um resultado aquém das expectativas. Não é motivador… Chego a casa nu domingo, e sem saber muito bem o que fazer.

Estava na altura de acabar a época, mas sentia que tinha em mim uma boa prestação pronta a sair, que ainda podia aproveitar a forma que tinha! Segunda-feira, eis que vejo uma publicação de um amigo espanhol (corro também numa equipa espanhola) dizendo que iria competir nesse fim-de-semana. Já conhecia o projecto da prova, um ironman. Rapidamente vou ao site e começo a estudar a ideia.

Terça-feira após falar com o meu treinador, lá me decido! Falo com o organizador e peço por favor para que me deixe competir. Diz-me que era complicado pois as inscrições já haviam fechado, e já era demasiado em cima da hora, pois a prova era sábado. Por fim consigo a inscrição!

Parto para Espanha logo na quarta-feira, viajo até Madrid onde pernoito na casa do tal amigo, e quinta-feira bem cedo seguimos viagem até Marina d’Or. Às 13h tinhamos a conferência de imprensa, onde me apresentam como um dos favoritos, mas em que tento retirar a pressão dizendo que não havia preparado uma prova daquela dimensão, explicando que me havia inscrito à ultima da hora e por impulso; que sabia que tinha muitos kms da época inteira em cima, mas muito poucos (ou nenhum) treinos suficientemente longos para um ironman nos últimos meses…

Os dias prévios foram calmos. Estava tranquilo, sem ansiedade e sem qualquer nervosismo. Estava ali para me divertir, curtir a experiência de um ironman e tentar fazê-lo sem erros! Sabia que se tivesse cabeça suficiente, e fizesse tudo sem falhas, poderia ter uma boa prestação. Quando falo em boa prestação, refiro-me apenas à minha prova, em conseguir superar a distância ironman sem quebras nem problemas fisicos e não à classificação.

A prova:
5:30 da manhã toca o despertador; levanto-me ensonado, mas com vontade de enfrentar um dia que ia ser longo e duro. Logo nos primeiros passos que dou em direção à cozinha, sinto o meu pé a deslizar… bolas!!! Tinha acabado de pisar uma “poia” de um dos cães do meu colega. Que rica maneira de começar o dia; 5:30 da manhã e eu a lavar os chinelos e limpar cócó de cão…. Começo a pensar, e vejo o lado positivo da coisa; “bom, ao menos dizem que dá sorte, e ainda por cima foi com o pé direito!”.
Resolvido este problema, comi tranquilamente e acabei de preparar o material e ainda tive tempo de me deitar mais um pouco.

7:20 dirijo-me à zona de transição, meto toda a nutrição na bicicleta e acabo de preparar as coisas. Ainda me dá tempo de fazer um pequeno aquecimento antes da partida, programada para as 8:30.

Encaminham-nos para a câmara de chamada, e de seguida para a linha de partida. Nesse momento, começo finalmente a sentir alguma ansiedade, mas nada mais do que o normal. Estava calmo e confiante! Estamos alinhados e prontos para partir, quando nos dizem que estão apenas à espera da autorização da Guardia Civil; passados 2min avisam que a partida vai ser atrasada, mas que no entanto não sabiam quanto tempo, porque estava tudo dependente de que a Guardia Civil conseguisse retomar o controlo do tráfego.

1h se passou até que fosse dada a partida!! 1h de espera na praia, a arrefecer, mas que se passou relativamente bem com o convivio entre atletas.

É dado o tiro de partida! Parto bem, e rápidamente me coloco em 3º, posição essa que mantive com facilidade até ao final dos 3,8km.
Na transição sou o mais rápido, e saio em primeiro para o ciclismo. Desde o inicio que meto o meu ritmo, e enfrento os 180km com calma, sem me esqueçer da alimentação e sem cometer quaisquer erros. Mantenho a liderança durante todo o ciclismo, chegando isolado à segunda transição com 9min de vantagem para um grupo de 6 atletas.

Saio para a corrida com calma. Eu sei, parece que andei a prova toda com calma, mas numa prova tão grande não nos podemos deixar levar por maluqueiras, e mais cedo ou mais tarde, tudo se paga!
A corrida era composta por 3 voltas (num percurso de ida e volta) de 14km. Depois do primeiro retorno (situado aos 7km) reparo que vem um atleta a correr bastante mais do que eu, os restantes mantinham um ritmo similar ou inferior. Aos 14km tinha de facto perdido bastante tempo, e já só contava com 6min para o segundo. Tento manter o ritmo e não entrar em “pânico”, com o tempo que perdia. O ritmo que ele trazia era demasiado alto, e era dificil que aguentasse toda a maratona aquele ritmo.
Entretanto, e ao fim de tantas horas sempre a comer, começo a sentir necessidade de aliviar espaço na barriga. Precisava portanto de fazer uma paragem para “necessidades básicas”. Num pequeno carreiro com mato à beira do percurso encontro o sitio ideal. Tento ser rápido, mas acabo por perder entre 1min30 a 2min. Foram minutos que ofereci “de borla” ao meu adversário. Depois do retorno dos 21km, repara que me ganhou bastante tempo, não sabendo que eu tinha parado pensa que foi tudo por mérito próprio e ganha ainda mais alento! No final dessa mesma volta (28km) acaba por me alcançar. Passa-me exactamente na zona do público, e ainda por cima, onde estava a sua familia e amigos! Aquela injecção de adrenalina fez com que me passasse a voar, e eu nem sequer tivesse hipótese de reagir. Vinha cansado, com poucas forças, e com as pernas já com muito pouca capacidade. Rápidamente abro 100m; é aqui que a cabeça começa a funcionar, começo a pensar que tinha feito tudo aquilo na frente, e que tinha liderado a prova tanto tempo, e ia deitar tudo a perder na última volta de corrida. Começo a fazer contas, e o 3º classificado vinha a 15min; portanto, isso queria dizer que podia arriscar, que mesmo que tivesse uma quebra, à partida conseguia manter o 2º lugar. Portanto, vou buscar forças e motivação onde não existiam, e onde nem eu sabia que tinha, e começo progressivamente a aumentar o ritmo, inicialmente começo por manter a ditância, e de repente ele olha para trás, repara que já não está a ganhar tempo e que eu estou a reagir, e ao mesmo tempo esse acto foi para mim uma motivação, pois sinto que o começo a deixar nervoso, e que já não corre com a mesma facilidade. Mantenho-me focado, e tentanto aumentar o ritmo ainda mais, começo a fechar o espaço, novamente ele olha para trás! Mais motivação ganho, e mais o desespero o assombra. Passados 2km de me ter passado, volto a alcançá-lo, e sem esperar mantenho o meu ritmo e passo para a frente. Este ato, mais do que físico, foi um grande golpe psicológico. Aproveitando uma subida bastante dura, e a posterior descida, rápidamente ganho 1’-1’30” de vantagem. Ainda assim, continuavam a faltar 12km até à meta. 12km onde tive de sofrer como nunca, e onde nunca dei a vitória por garantida, tal era o estado em que me encontrava. As pernas doiam-me como nunca tinham doido, e tinha ameaços constantes de cãimbras em praticamente todos os musculos das pernas. Sentia que a qualquer momento, a qualquer movimento fora do normal, poderia ficar ali agarrado às pernas com cãimbras; e num percurso tão complicado como este, onde tinhamos escadas, retornos de 180º, passeios, subidas, descidas, vários tipos de piso, esse risco era constante.

A faltar apenas 2km para o final, mantinha 1’30” de vantagem, mas continuava com a certeza de que nada estava garantido, e apesar de já dentro dos últimos 400m ter imensa gente a esticar-me a mão, para um “hig5”, não houve reacção da minha parte. Geralmente sou bastante simpático e sorridente, e interajo bastante com o público, mas neste caso, dado o estado de fadiga extrema e pressão em que vinha, a juntar ao risco de poder ficar apeado a qualquer momento, só me pude dar ao luxo de dizer a mim memso que já estava, que já tinha ganho, quando finalmente cheguei à recta da meta! Ai sim, dei “hig5’s”, festejei, gritei de alegria e sobretudo de ter conseguido ter aquela vontade, de ter conseguido superar-me a mim mesmo, porque na verdade é esta a essência deste desporto; e mesmo antes de cruzar a meta, dei um sentido abraço ao meu companheiro de equipa que me apoiou bastante durante toda a prova.

Foi uma chegada à meta bastante emotiva, onde me chegaram a cair algumas lágrimas. A felicidade e emoção, não residiam no facto de ter ganho a prova, mas sim da forma como ganhei. Por ter conseguido dar a volta por cima, quando tudo parecia perdido, e quando as probabilidades estavam todas contra mim.

Mas tal como nos últimos kms, eu sabia que não tinha a vitória garantida, também sabia, quando as coisas não corriam de feição, que nada estava perdido. Isto é o ironman, onde nunca nada é garantido!

No final, e já 2h depois de ter terminado a prova, o meu estado piorou e tive de ser levado para a tenda médica. Tinha sido um dia bastante duro, onde o esforço exigido foi demasiado. Alguns exames, e um balão de soro depois, lá me deixaram ir para casa.

A noite depois da prova foi deveras complicada, as dores nas pernas eram tantas que acordei eram 5 da manhã. Foi uma noite dificil, onde não consegui descansar muito.

Eu diria que todo o esforço valeu a pena, não apenas pelo resultado e pela vitória, mas sobretudo por ter conseguido provar a mim próprio que tenho uma capacidade de sofrimento e uma vontade maiores do que aquilo que penso! Por ter conseguido manter a calma e lutar contra todas as adversidades, e por nunca ter perdido a concentração ao longo destas 8h52min!!

Agora, chegou finalmente a altura de descansar. É tempo de recarregar baterias, ter umas férias, e começar a pensar em 2016! Ah, e tão cedo não quero voltar ouvir a falar de ironman!

Texto de: José Estrangeiro