Os candeeiros existem na Serra da Lousã
Há. Candeeiros de cristal. Com os pingos da chuva a refractar a luminosidade das pedras, no breu do alerta amarelo que o Instituto de Meteorologia (IPMA) guardou para aquele dia. Tinha que ser naquele dia. O candeeiro cai, solene, de uma ramada, entre as folhas de vinha que restam do verão, num fundo de vale escondido à sombra da encosta, parece que há um castelo lá em cima. E cheira a humidade de mosto à espera de fermentação, a grainha esmagada à espera do alambique, a tudo o que seria inesperado quando, horas atrás, arrancou o Ultra Trail das Aldeias de Xisto em versão para meninos. À hora em que os grandes já levavam oito horas de superação na indomável serra da Lousã.
Superação e candeeiros a escorrer o dilúvio. Um resumo pobre, dirão, mas é o resumo que nos ocorre da aventura desenhada com mestria pela Go Outdoor e o sorriso quase sarcástico de João Lamas. O UTAX é isto: fazer o impensável e ver o inacreditável.
Quando nos convenceram a alinhar nos 51 km (foram 53, ó Lamas), disseram-nos, não, o UTAX não é o Trilho dos Abutres, aquela meca do Trail técnico levado ao expoente máximo pelas inclementes intempéries de janeiro. Não. O UTAX é quase seco. Quase. O alerta amarelo virou tudo do avesso e o UTAX acabou por ser os Abutres, em sentido contrário. Mas nem nós, na manhã cinzenta de sábado, nem eles, os grandes, na meia-noite quente de sexta, déramos o devido crédito ao IPMA.
Num ambiente digno das maiores corridas de montanha, Miranda do Corvo viu fugirem-lhe do aconchego mais de 300 alucinados de lanterna na testa e um arsenal de material de sobrevivência às costas, enquanto os Ramones gritavam “Hei ho let’s go!” Assistir à partida deles foi melhor do que partirmos nós. Há um certo arrepio que se prolonga pela espinha, conhecemos a Lousã, a Lousã é um monstro capaz de engolir a mais forte determinação. Mas eles meteram-se nas mandíbulas dela, alheios ao amarelo. E nós gritamos os parabéns a Rui Pinho, no milionésimo de segundo em que as nossas mãos se cruzaram, ele a correr, nós arrepiadas. E fomos dormir. Pronto. O Trail tem disto também: uns correm, outros descansam. Tínhamos o novel Centro de Trail Running de Vila Nova à nossa espera, já cheio daquilo que seria o último abastecimento dos heróis, aos quase 110 km de sofrimento.
Pareceu tudo demasiado rápido. Pouquíssimo depois estávamos nós no controlo zero, sem nos lembrarmos do amarelo. Nem de verificar a bateria do frontal, que diabo, frontal para quê, são só 51 km, despachamos isto a brincar, certo Susana?, dez horas tip top! Isso… E foi um repente, Espinho e a sede da associação onde em Julho nos dobráramos às gargalhadas a degustar presunto com tomate à mesa de quem lá estava, a subida que descêramos de Gondramaz, a Ribeira do Conde, um carrossel de beleza inexplicável, pontes de toros a atravessar vazios, vertigens, raios delas, o caldeirão, não hoje não vamos ao banho, mais cascatas e a bela e discreta Gondramaz, majestosa no disfarce do xisto, aldeias que não se veem porquanto brotaram do chão que as acolhe. Há comida e Miro Cerqueira a fotografar a alegria dos ainda divertidos 10 km, passos de dança e ouriços dos castanheiros a povoarem-nos os pés, tudo isto é demasiado belo e nem dói, Susana, e há gatos, até. Mas isto foi antes da descida trilhada para a Lousã, aqueles 650 metros de desnível negativo que ficam uma semana nos quadriceps e que travam a meio, ei lá, calma que isto sim, já dói e a pista é de BTT mas os pneus não, vamos lá ver. E é aí que o amarelo dá um ar de sua graça. Pinga-nos o calor da vertigem, aos poucos, fica certinho até ser uma cortina de bátegas, vistas de onde aportamos de repente, um salão escondido atrás de jardins à moda oitocentista no hotel da Lousã. Um abastecimento dentro de portas de luxo, em que ir à casa de banho pode ser um risco, pode ser aquele triz que falta para atirarmos a toalha – os bastões e o buff – ao chão, como alguns faziam, tal é uma miragem de paraíso aquele bafo quente de um corredor aquecido. Há presunto. E chourição. E tanta chuva lá fora. E metade da prova por cumprir…
Vestimos o impermeável de que tínhamos desistido na primeira subida, passamos a mão pelos olhos e avançamos cortina de chuva dentro para o mais belo momento do UTAX: serpentear junto a uma levada debaixo do dilúvio ampliado pela ramagem, no passo de corrida apressado pelo frio que já gela o nariz, mal conseguindo abrir os olhos tanta era a água que o amarelo nos atirava ao rosto. A roupa já é só corpo, os pés estão enfiados numa cascata de lama quente que se suicida montanha abaixo, numa subida de que nem damos conta, tal é a incongruência de tudo. Até que estacamos, desafiando o olhar uma da outra, entre raiva e incredulidade. E desatamos numa gargalhada cristalina a perturbar o silêncio silvado da tempestade. Não faz sentido. Nenhum. Como não o faz parar na cruz junto à primeira capela, a olhar o famoso castelo da Lousã, debaixo de feixes de água. Tão pouco o fará sentarmo-nos num banco de lousa inundado, a uma mesa de piquenique.
O castelo, o burgo, o vale enfiado e, lá está ele. O candeeiro de cristal. Um homem avalia a fermentação nos balseiros que ocupam parte do caminho, o vinho doce entra-nos espírito dentro e impede-nos de perguntar porquê. Porquê um candeeiro de cristal numa ramada? É a pensar nisso que abordamos o resto, a ida aos céus para entrar no postal do Talasnal, um paraíso de xisto a pique, sabemos que há sopa lá no alto, prometeram-nos e nós estamos molhados, todos molhados e sim, precisamos tanto de quentura como de um abraço. Três quintos de prova, o amarelo instalou-se, está definido no teto do céu, tão baixo que achamos tê-lo tocado, está definido no prazer que uma canja estupidamente salgada mas a ferver de conforto nos pode dar, está definido no rosto de Hugo, ultra em luta feroz com a indisposição, ele e outros, muitos, num abrigo que nos afugenta com o cheiro da passagem de corpos destruídos, vomitados pela dureza da Lousã, mas determinados a conquistar o que falta.
Passaram os 80 km, eles. E já nem sentem o segundo dilúvio, puxado a rajadas, este, com as eólicas à vista. O teto, afinal, abateu-se até ficar abaixo dos nossos pés, é nele que evoluímos, com a mão a desaparecer se a esticarmos, a ventania a contrariar a resiliência. Se paro hipotermizo, a palavra não existe mas nada disto existe, em boa verdade, já nem se vislumbram as eólicas que uivam com o vento, nem a sanidade que faria o bom senso suspender tudo, ali. Não. Corre, ou morres. É o que nos parece ser a escolha. O amarelo, afinal, é uma neblina leitosa e assobiada e é o sorriso de João Lamas a mandar fixes de dentro da carrinha de janelas hermeticamente fechadas que marca o desvio dos heróis e o dos meninos.
Naquele momento, é assim que o vemos. Imaginá-lo-emos de olhos raiados de maldade ao longo dos 15 km que faltam. Eu inscrevi-me no UTAX, não nos Abutres, chega de lama, de descidas de rabo no lodo, de pés enfiados em charcos, alguns de cheiro duvidoso. Chega de achar, a cada curva da serra, que estamos a entrar em Vila Nova quando afinal não era, foi só um ar que lhe deu, era apenas um cão a ladrar, um. Até que percebes que ainda só desceste até à Senhora da Piedade de Tábua e olhas para o relógio e dás conta de que a ameaça de memória cheia se concretizou e estás, assim de repente, ao cabo de 42 km, com o mostrador a zeros. O corredor é um animal de hábitos. Sem o GPS, é um tolo no meio da ponte. De onde venho, para onde vou. De onde sou.
João lamas está no santuário, o derradeiro controlo para os meninos. Faltarão 8 km. “Por aí 1h45…” Quando é o organizador que te diz que vais demorar tudo isso a engolir 8 km, vingas-te no presunto para não partir para o insulto e num repente percebes que será mais. Muito mais. “Não te assustes com a subida agora…” Brincamos, não? O que dói, já, é descer, que deixámos as coxas no hotel da Lousã. Tranquilo, diz ele, pouco técnico, pouca lama. É mentira. Tudo. A subida é uma parede a conquistar de gatas, as descidas são técnicas e engolimos mais lama do que numa vida inteira. Aí soltamos os insultos, no laranja do sol a pôr-se num céu lavado pelo amarelo do IPMA, no roxo lusco-fusco, no desespero de um frontal periclitante de tanta chuva ter levado em cima. E agora vêm as lágrimas, merda, logo agora que parou de chover, vale que o cortejo se esticou e a solidão é que nos dá a mão na entrada para a escuridão, lanterna do telemóvel indecisa entre apontar as pedras do trilhos ou o brilho das fitas. “És tu e o trilho” riem-se elas, vermelhinhas quase amarelas de sarcasmo. Pensamos na chaveta que colocaríamos na frase, a introduzir um qualificativo extraído do vernáculo da montanha, desse de quando ninguém nos ouve. Percebemos então por que caem candeeiros de cristal das ramadas em plena serra… Porque nada tem lógica.
Vemos as luzes e bufamos como um toiro quando nos apontam o bosque e as lágrimas, arre, Calimero do demo, voltam, cabras, sabemos que é terra de chanfana, mas que diabo, e de repente três ultras a trote, entre eles Jorge Serrazina (Trilho Noturno da Lagoa de Óbidos? É ele), vais secar esses olhos e ganhar vergonha? Eles têm 116 km nas pernas… Enfiamo-nos no cone de ar deles, àquela altura um trote já é velocidade estonteante, desloca o ar, desligamos a lanterna do telemóvel, parece mal, e chegamos na sombra, na apoteose da tribo a saudar esse enorme atleta. Vê-los chegar é melhor do que chegarmos nós. Como vimos, 25 horas depois de o termos visto partir, chegar Rui Pinho, já no dia seguinte ao do aniversário… Parabéns, pá!, e agora a palavra é tua…
Miranda do Corvo é uma Chamonix à portuguesa. E as semelhanças não se ficam apenas pelos imensos curiosos da modalidade ou pelos muitos atletas que se aventuraram numa das distâncias da prova, passam também pelo tratamento de heróis que é dispensado aos que chegam das entranhas de lama e água de uma serra que é um ninho de experiências arrepiantes e um santuário de fauna e flora do mais apreciável que Portugal tem.
Às zero horas em ponto mergulhamos num imenso festival de cores de Outono, com timbre de chuva e sussurros de vento. As árvores dançam a cada rajada, anunciando um dia que prometia tempestade. No breu apetece sempre desligar o frontal e beber toda aquela paz intranquila, todo aquele formidável ambiente de herói, já que só os heróis por ali andam. Fazem-nos heróis à partida, à chegada, à passagem por cada abastecimento, e nós não nos fazemos rogados. Se encontramos alguém que não sabe ao que andamos, anunciamo-nos heróis, dizemos os quilómetros que fizemos e os que faltam fazer: “Boa caminhada!”, “Caminhada não; corrida!”, exclamamos, reclamando um papel de heróis que só os bravos da frente conseguem cumprir. Os outros, nós, os de trás, somos heróis da resistência, heróis em cada abastecimento, barafustamos com aquela “merda toda”, salientamos o nojo de mergulhar em lama, de chafurdar nos trilhos pisados por centenas, gritamos vernáculo pelas assaduras nas virilhas, no rabo, em tudo o que roça, lamentamos as bolhas, as unhas negras, as dores nas pernas e as forças que se vão. E assim somos heróis. Desfeitos por uma serra bela e de uma dureza assustadora, vamos de aldeia em aldeia admirando o xisto que as cobre e as heras de todas as cores que as embelezam; Saímos de Espinho para Gondramaz, fomos da Lousã à Cerdeira, da Pena ao Coentral, de Vaqueirinhos ao Talasnal, da Senhora da Piedade ao Terreiro das Bruxas, da Ribeira do Conde à Praia do Poço da Corga, de Miranda a Castanheira e voltar. Heróis que vagueiam nas montanhas. Um papel de herói sem espada, de guerreiro de uma batalha contra si mesmo, voluntário numa guerra simulada onde a dor é garantida.
Voltar à Serra da Lousã é mais forte que nós. Ninguém lhe resiste. Não é à toa (ou talvez seja) que as provas mais marcantes são ali. Voltamos a um lugar que é sempre belo e duro. Vamos sempre ver se é mesmo o que sentimos antes. Somos uma tribo que volta sempre ao lugar onde é feliz, dure os quilómetros que durar, acabemos ou não. Vamos sempre na anestesia de grupo, num exército insano em marcha de vitória.
Ninguém vai a provas só para correr na natureza, como ninguém vai a casamentos só para comer. Vamos para celebrar. A natureza e a nossa condição casual de heróis. Subimos, descemos, voltamos a subir e “esta merda nunca mais acaba” e voltamos a descer, que dói já mais do que subir. E como em todas as festas há os que ficam até ao fim, a amparar os bêbedos. Eram os que lá estavam quando cheguei. E fizeram-me uma festa igual à que fizeram ao último e melhor que ao primeiro, porque no trail todos somos heróis…
Texto de: Ivete Carneiro e Rui Pinho
Fonte: JN Running