Inquietude do desconhecido, vontade e a curiosidade

Mário Elson - Foto: Frítz Photography

A incerteza e a inquietude que as Voltas do Impossível me estão a causar só se comparam ao nervoso miudinho que senti nas primeiras provas da minha vida.

Foram estes sentimentos que transmiti, através de palavras, quando enviei a minha candidatura.

A inquietude que não me é estranha, muito ligada à minha vida militar.

Muito provavelmente terá sido um dos motivos pelo qual fui selecionado.

O Impossivel consegue transmitir o receio e a inquietude, ao mesmo tempo que a vontade e a curiosidade.

E foi com este espírito que me apresentei na partida da 1ª edição das Voltas do Impossível.

Voltas do Impossível

José Moutinho

Quem já ouviu histórias sobre Trail, já ouviu sobre o José Moutinho.

O grão-mestre da Confraria Trotamontes é imensamente conhecido pelas provas que organiza, pelos desafios a que nos propõe, caracterizados pela muita dureza mas igual beleza.

A inquietude que As Voltas do Impossível provocou

Preparei-me o melhor que pude para o “desconhecido” pois não sabíamos como seria o percurso nem o tipo de trilho.

Sabíamos de antemão que seriam 5 voltas de 21km com 1500m de desnível positivo, cada uma, totalizando 105km e 7500m D+, números que metem muito respeito.

Para dificultar teríamos que concluir as 3 primeiras voltas abaixo das 9h, a 4a volta ser feita abaixo de 3h e terminar o desafio das 5 voltas em 15h.

Inquietude
Mário Elson

Ou seja, “Impossível”

Pelo caminho teríamos ainda que recolher as guias de transporte que nos correspondiam, de 13 caixas que estavam algures no percurso.

Na véspera tivemos conhecimento do percurso e da localização das caixas.

O percurso não estava marcado, para o seguirmos foi disponibilizado um track GPX pelo que seria obrigatório levarmos um dispositivo GPS.

A juntar a isto tudo, não sabíamos o horário da partida, sendo esta anunciada 1h antes através de um toque de sineta.

Foto: Jorge Camisão

Sabia que iria ser muito difícil concluir o desafio, apesar de muita gente achar que eu seria um forte candidato a concluir.

O meu primeiro objetivo passava por não me magoar e não me perder, e depois tentar fazer as 3 primeiras voltas dentro do tempo, depois era o que desse para fazer.

Às 21h do dia anterior estava no briefing do desafio em Rio de Frades.

Várias caras conhecidas (por trás das máscaras).

Ouvíamos atentamente as indicações do Moutinho sempre reforçadas por uma boa dose de História.

Ficamos a conhecer a história das minas, da dureza da época e dos “pilhas”.

A noite foi passada com alguma inquietude, cada qual pelo seu canto, uns nos carros, outros em tendas, houve até quem estivesse a dormir em cadeiras ou mesmo no chão, todos à espera do toque da sineta.

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O toque da sineta.

E esta tocou às 06h30, por isso a partida seria 1 hora depois.

A arena da prova estava perfeita, com uma zona muito espaçosa para acampar, outra para caravanas, os locais para abastecimentos eram ao longo do caminho.

A organização não marcou um local específico, deixou os atletas à vontade e o local de partida era suficientemente grande para partirmos com a devida distância social.

Não senti nervosismo, nem em mim nem em qualquer outro participante, senti antes uma inquietude pelo desconhecido, uma curiosidade pela descoberta e uma vontade férrea de auto-superação.

Todos sabíamos para o que ali estávamos, sabíamos as regras do desafio mas não sabíamos o que viria a seguir.

Estaríamos preparados?

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Acendeu-se a lamparina

E as 07h30 em ponto acendeu-se a lamparina e os atletas partiram.

200 metros à frente pudemos tirar as máscaras e só voltaríamos a colocar nos abastecimentos e na chegada (o local de abastecimento, de partida e de chegada foram o mesmo local).

A única parte plana e que dava para correr (um pouco mais que trote) era mesmo esta junto à arena, logo depois entramos nos fantásticos trilhos da Freita.

Inquietude
Mário Elson – Foto: Frítz Photography

Subidas íngremes intermináveis, pedra e mais pedra, mas que valem muito a pena pois no topo é obrigatória a paragem ainda que momentaneamente para nós deliciarmos com a paisagem.

Logo de seguida descidas vertiginosas, com lajes afiadas mesmo à espreita parecendo à espera das nossas canelas.

Passagens deslumbrantes por rios e ribeiras, não ficávamos indiferentes às cascatas pelas quais íamos passando ou pelas levadas em que íamos serpenteando.

E como não poderia deixar de ser, o tojo e as giestas que nos dificultavam a progressão.

Inquietude
Mário Elson na frente

As diferenças de um momento para o outro

Incrível a diversidade da Freita, tao depressa estamos numa fraga, como a seguir temos água pela cintura, logo de seguida num single track debaixo de árvores como a seguir num pântano no planalto.

Tanto está o sol a queimar numa encosta, como está nevoeiro cerrado no vale a seguir e um vento gélido no pico da serra.

Tanto que a serra nos ofereceu, tanto que o Moutinho nos preparou e ainda não tínhamos terminado a 1ª volta… e ainda faltavam mais 4 (achava eu).

inquietude

Ao longo do percurso íamos encontrando as caixas onde estavam as guias de transporte correspondentes que íamos recolhendo.

Á primeira vista parece uma tarefa fácil, mas até encontrar as caixas e depois a respetiva guia tornou-se um desafio.

Para terminar a 1ª volta, a estreia de um trilho virgem, o trilho do Asiático.

É o trilho mais duro que alguma vez percorri, tanto a descer como a subir (sim, faz-se ida e volta, e seguido).

A tormenta e a inquietude sempre presentes, em cada dobra do terreno, em cada pedra do trilho, em cada metro do percurso.

Mário Elson

O fim da 1ª e inicio da 2ª volta

Terminei a 1ª volta com 2h59, não dei tudo o que tinha (nem podia, nem devia) mas fiquei com a sensação que também pouco poderia melhorar, o que me deixou algo apreensivo.

Pensei que a navegação seria mais fácil a partir dali, mas rapidamente vi que estava enganado, porque como as voltas eram feitas em sentido contrário alternadamente, aliadas ao nosso (muito) cansaço, perdemos a noção de termos passado pelo mesmo local.

No abastecimento é importante alimentar-me bem, gastamos muita energia nestas encostas, e na minha opinião é fulcral termos apoio externo.

Mário Elson e a esposa

Eu tenho a feliz sorte de ter uma mulher e uns amigos excecionais que estão sempre presentes, incrível o que fazem por mim.

Na 2ª volta já dei tudo o que tinha no corpo e nas pernas, perdendo menos tempo na navegação e com as guias de transporte, mas achei o percurso muito mais duro neste sentido.

A 2ª volta foi concluída com 3h10. Não estava a conseguir tirar tempo. E também não estava a ver mais ninguém a conseguir.

Posto de controle e abastecimento

O toque da marcha fúnebre

Ao fim desta volta começava a ver as primeiras “vítimas” e começava a ouvir o toque da marcha fúnebre.

Mesmo fora de tempo, parti para a 3ª volta (novamente no sentido da 1ª), estava disposto a dar ainda mais de mim, saí determinado (“mais vale partir do que vergar”), mesmo que não desse sabia que não me restava nada mais para dar.

Pelo menos agora já sabia a dureza que me esperava.

Mário Elson – Foto: Frítz Photography

E assim foi, ataco a primeira subida (3km 700m D+) com toda a força e rapidamente (a rapidez subjectiva) me coloco no topo, mas mais tarde percebi que desgastei-me demais, porque logo a seguir desci e na 2ª subida as pernas já não respondiam.

E o pior é que me apercebi que tinha falhado na caixa n° 2.

Lembro-me perfeitamente da caixa, de passar junto dela, mas a falta de discernimento aliado ao cansaço extremo da subida não me lembrei de tirar a minha guia.

Tive que voltar atrás e perdi muito tempo e acumulei ainda mais cansaço.

Já sabia que não ia chegar a tempo, mas o coração não ligava ao que a razão dizia e eu continuava a dar tudo de mim.

Mário Elson

Andar para a frente, voltar atrás e prosseguir de novo… a inquietude…

Voltei a falhar mais uma caixa, a n° 5 e só me apercebi quando cheguei na 6.

Estava cansado e tinha também que conseguir raciocinar para além de me deslocar senão iria ser pior ter que andar constantemente a voltar para trás para apanhar as guias.

inquietude

Tive que obrigar a abrandar-me, obrigar a alimentar-me para pelo menos terminar aquela volta de forma digna.

A resignação veio ao de cima, desta vez a montanha foi mais forte e a inquietude deixou de me atormentar, a Freita que até então me punha à prova, acolheu-me e eu deixei-me levar calmamente ao longo dos seus trilhos.

Mário Elson e Guilherme Lourenço

O Guilherme Lourenço e eu …

A 1a volta fiz praticamente toda na companhia do Guilherme Lourenço.

O Guilherme é um excelente atleta, é um vencedor do Ultra Trail Serra da Freita, um dos melhores de Portugal, é um amante daquele tipo de desafios.

Devido a um erro que cometeu numa das caixas das guias perdemos o contacto e fizemos a 2ª volta e pouco mais de metade da 3ª volta, separados.

Até que na 3ª volta ele apanhou-me e o meu plano de vir calmamente até ao fim acabou-se (risos).

Colocamos um bom ritmo e decidimos terminar em conjunto (por esta altura já sabíamos que íamos chegar fora de tempo).

inquietude
Mário Elson

A chegada à meta foi um misto de:

Emoções, tristeza por não poder continuar, por não ter concluído o desafio.

Uma grande alegria por tudo aquilo que tive o privilégio de usufruir.

Um orgulho enorme por ter sido um dos que participou nesta 1a edição das Voltas do Impossível.

Ao ouvir o “Taps” ao som da corneta Bagle (toque fúnebre) passou-me pela cabeça toda esta fantástica experiência e realmente senti que tudo fez sentido e tudo valeu a pena.

Até para o ano.

Super Mário.

As palavras finais da edil de Arouca e da organização

Queremos continuar a ser competitivos neste segmento do Trail.

Pretendemos continuar a atrair os mais audazes, a desafiar o impossível, num território duro, mas simultaneamente belo e inconfundível.” Margarida Belém, Presidente da Câmara Municipal de Arouca

A organização dá assim por cumprido o objetivo proposto, com a certeza de que, mais do que a superação do desafio em si, esta competição prima pela singularidade das emoções que traz consigo.

O espírito, entre todos os 35 atletas, foi de grande companheirismo.

Até ao fim, acreditaram que seria possível verem o seu nome gravado na rocha de xisto.” José Moutinho, Grão-Mestre da Confraria Trotamontes

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Texto: Henrique Dias – OPraticante.pt com a Colaboração de Mário Elson
Fotos: Cedidas pelo atleta / Frítz Photography / Jorge Camisão

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