“Para acabar os 45 km que faltavam tinha de me manter a correr”

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É um orgulho para O Praticante ter de novo este grande atleta Carlos Guerreiro Coelho a escrever para o nosso projecto, depois da aventura no Jungle Marathon nas Amazónias.
Ultra Fiord 100 Km
Depois de uma viagem de 38 horas, 4 aviões e 200km de carro cheguei finalmente a Puerto Natales, na Patagónia Chilena para o Ultra Fiord 100 Km.
A minha primeira impressão deste lugar frio e inóspito foi de espanto perante a beleza verdadeiramente surreal.
Participar numa prova nos fiordes gelados do Chile foi sempre para mim uma tentação enorme, quer pela beleza natural desta região ainda um pouco selvagem, quer pela dureza do percurso. A paisagem é dominada por montanhas de pedra solta e muita neve, gelo, riachos e floresta rasteira mas muito densa.
Após um dia em Puerto Natales para fazer o registo na prova e a verificação do material obrigatório, que para espanto meu, dado a dureza esperada nesta prova extrema que iniciava agora a segunda edição, não se realizou, parti para Torres del Paine ao lado de uma planície de uma beleza única, rodeada de altas montanhas cobertas de neve onde se situava a partida. A organização decidiu alterar o percurso da prova, de uma altitude máxima de 1250 metros, para um de 850 metros por se prever uma forte tempestade de neve, que se confirmou.
Foi dada a partida à hora prevista e mais uma vez não houve qualquer controlo de material nem registo dos atletas que iniciavam a prova. A primeira hora foi tranquila, com muitas subidas e descidas de pouca elevação sem neve nem muito frio. A partir daí, quanto mais subia, mais o vento aumentava, a temperatura desceu muito rápido até que aos 300 metros de altura começou a nevar intensamente. Apesar disto, não me parecia nada mais do que eu esperava. A partir dos 500 metros tudo piorou: o vento continuou forte, a tempestade de neve piorou, a temperatura desceu para uns -5º graus, causando-me dificuldades de progressão combinando fraca visibilidade, péssima qualidade do piso com muito gelo duro e inclinação lateral acentuada.
Ao chegar aos 750 metros de altura o quadro estava de tal maneira assustador que só pensava em sair dali o mais depressa possível. Estava completamente gelado, de roupa ensopada e tive a certeza que a velha máxima “Parar é morrer” ali aplicava-se literalmente. Todo o cuidado era pouco porque qualquer erro que provocasse uma lesão teria decerto consequências severas. A descida, como sempre, é pior e mais perigosa que a subida, tendo causado bastantes quedas entre os participantes.
A neve continuou a cair durante todo o percurso e nos bosques ao derreter com a nossa passagem tornava-se lama escorregadia e profunda, a água gelada dos riachos quase congelava pernas e pés. Ao chegar ao único ponto de abastecimento, que se encontrava a meio da prova e onde estaria o meu saco com comida e troca de roupa e ténis, tive a desconcertante noticia que o mesmo não estava lá. Após 5 minutos de desânimo, encharcado e a sangrar bastante de um joelho, consequência de um embate com uma rocha que tinha passado despercebido devido a apresentar já um estado inicial de hipotermia, resolvi partir o mais depressa possível. Tremia tanto com frio que me apercebi de que para acabar os 45 km que faltavam tinha de me manter a correr e não podia parar mais até cortar a meta.
Foi um início de noite muito difícil, piso rolante mas muito desgastante psicologicamente. Foi ainda debaixo de um enorme nevão e ao nível do mar que cortei a meta. O cronómetro marcava 15.18 h e consegui um 3º lugar no meu escalão, a 1 minuto do 2º e a 7 m do 1º classificado, num 32º lugar na classificação geral.
Soube depois, com enorme tristeza, que um atleta Mexicano tinha falecido de hipotermia aos 700 metros de altura e que estavam ainda 5 concorrentes desaparecidos na montanha. Estes felizmente tinham conseguido abrigar-se com mais outros 6 atletas, tendo sido evacuados de helicóptero um dia depois, após a melhoria das condições meteorológicas.
A nível da organização da prova, embora houvesse uma grande boa vontade e esforço, não conseguiu acompanhar o crescimento brutal de inscrições desta segunda edição em que, devido a uma grande campanha nas redes sociais, participaram centenas de atletas de 35 países diferentes. Todo o percurso estava muito bem marcado mas não existiam médicos nem socorristas na montanha. Os organizadores não tinham comunicações fiáveis, e houve bastantes casos de atletas em estado de hipotermia salvos por outros concorrentes que desesperadamente pediam socorro sem que nada lhes valesse. Esta grande falha, que levou a forte discussão na entrega de prémios, pelos atletas que salvaram outros, pode ter evitado o salvamento de uma vida e poderia ainda ter causado outras mortes…
Dentro de 45 dias encontrarei um clima totalmente oposto, descendo de 3.200 metros de altura para a selva Amazónica do Peru, para a Jungle Ultra – Beyond the Ultimate de 230 k.
Visualize o artigo anterior sobre o Jungle Marathon nas Amazónias.
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Texto: Carlos Guerreiro Coelho
Fotos: ultrafiord.com