Ultra Trail Serra da Freita 2015

Ninguém se voluntaria para correr mais de meia centena de quilómetros na Serra da Freita de ânimo leve. Os dois representantes da equipa do Praticante/Ultra Trail Vilar de Perdizes eram estreantes nesta Serra, mas já lhe conheciam a fama: o berço das corridas de montanha em Portugal, provas duras, desafiadoras, onde aos elevados desníveis em trilhos técnicos se junta um clima por vezes castigador. Antes da partida ouvem-se as últimas histórias, as derradeiras dicas dos mais experientes, sobretudo as dos corredores intrépidos que iriam pôr-se à prova ao longo de cem quilómetros do Trail Elite.

Este ano, a partida, às sete da manhã, fez-se ali mesmo em Arouca, introduzindo um troço de ligação ao Merujal de cerca de nove quilómetros que tem de tudo um pouco. Um inevitável começo em asfalto até se entrar nos esperados caminhos rurais de transição para os trilhos de montanhas mais inclinados, de piso mais técnico. Lá no cimo, junto às enormes eólicas, que nos pareciam pequeninas lá em baixo na partida, o primeiro abastecimento. O calor ainda não apertava, mas depois de se subir mais de uma hora, soube bem sorrir para quem nos sorria e incentivava, beber um pouco de água e reabastecer. Alguns atletas da prova mais curta de vinte e oito quilómetros não ficaram muito agradados com esta parte inicial, que todos teriam de repetir em sentido contrário, no regresso a Arouca para se cortar a meta. Percebo a lógica dos descontentes, afinal, da verdadeira Freita iriam saborear apenas uma dezena de quilómetros, mas essa é uma das inevitabilidades de se correr uma prova curta partindo de Arouca. Já para as distâncias longas parece ser uma forma ideal para se chegar ao coração da Freita.

Quando se passa o primeiro abastecimento já o pelotão está disperso, esfrangalhado em pequenos grupos espalhados pelo planalto de piso irregular e vegetação rasteira, vistas a perderem-se em horizontes delineados contra um céu perfeitamente azul. E vamos somando ansiedades, passo após passo, salto após salto, descida após subida, subida após descida, numa promessa de dureza solitária que tínhamos a certeza nos chegaria em breve e nos acompanharia nas horas seguintes. Antes do segundo abastecimento temos o primeiro encontro com um curso de água cristalina, um pequeno canal de rega que serpenteia connosco a encosta na última sombra fresca. Até a este posto de controlo de Tebilhão a prova, com pouco mais de vinte quilómetros passados, é quase sempre “corrível”. A partir daqui, os trilhos tornam-se mais sérios e irregulares e os desníveis acentuados são mais frequentes. O calor foi chegando, trazendo mais cansaço, aumentando a importância das fontes de água, dos ribeiros e dos rios. A progressão torna-se mais lenta e cautelosa. E depois surge a “besta”. Um curso de água entalado em duas encostas empinadas bem no meio da serra. Cá em baixo aprecia-se a beleza mas já se desconfia das dificuldades. E não se é defraudado. Sofre-se ao longo de mais de uma hora de escalada de mãos e pés nas rochas. O planalto, lá em cima, traz alívio e empurra-nos para uma longa descida até ao abastecimento em Manhouce.

De Manhouce até à Lomba o calor é o principal inimigo. Há que aproveitar a ida refrescante ao rio. Do rio à Lomba mais uma subida à mercê do sol do meio dia. O abastecimento da Lomba é um ponto fulcral onde cada um deve sente se está em condições de ultrapassar as últimas encostas até ao parque de campismo do Merujal. Alguns ficaram por aqui, outros ainda se aventuraram mais alguns quilómetros mas acabaram por voltar à Lomba e entregar-se a uma desistência digna de quem fez tudo o que podia para chegar à meta. Tenho a certeza que esses serão dos primeiros a voltar a desafiar esta serra.
Quando ao longe, quase no cimo do monte, se começa a ver o Merujal, ainda se tem que percorrer um bonito “single track” de um par de quilómetros serpenteando na parede da encosta. Nesta altura o corpo já aguenta tudo porque acreditamos mesmo que vamos terminar. Com esta espécie de exaltação emocional sente-se mais profundamente a beleza donde se corre. Esta satisfação interior estava estampada nas nossas faces quando entramos no último abastecimento. Mais uma vez receberam-nos com simpatia e tranquilidade.

Sem pressas, partimos para o último troço. Os mesmos nove ou dez quilómetros iniciais mas agora ao reverso, já em despedida, sempre a descer até Arouca, onde se chega de peito inchado com um enorme sentido de missão cumprida. Quando entro no pavilhão já o meu companheiro de equipa está à espera. Portamo-nos bem. Terminamos os dois abaixo das dez horas de prova, num terceiro e num quinto lugar da geral, correspondendo a dois segundos lugares nas categorias masculinas de seniores e veteranos mais de quarenta.

Antes de sairmos de Arouca ainda nos deliciamos com uma vitela num humilde e barato restaurante. A viagem de regresso serviu para trocarmos histórias do dia. Foi óbvio o encantamento com esta prova e também foi com normalidade que fizemos a promessa de voltar para a distância maior já para o próximo ano. As razões não são difíceis de encontrar. Ali respira-se o essencial do “trail running”, não se perdem recursos com aspetos acessórios. Os abastecimentos não são em cada esquina nem servem manjares, o controlo competitivo e a gestão das inscrições não utiliza tecnologias de ponta, é quase tudo manual, as informações prévias das distâncias e da altimetria não são um primor de precisão, e a t-shirt e os prémios de “finisher” são do mais normal que há. Mas é impossível não nos rendermos à pureza daqueles trilhos duros no coração duma serra bela e agreste, ao contraste dum clima brutal com as fontes de água cristalina e fresca, à simpatia discreta e sincera de quem apoia os atletas, à paixão conhecedora de quem engendra os trilhos e de quem lhes sabe as histórias e as lendas.

Classificações dos elementos da equipa “O Praticante/Ultra Trail Vilar de Perdizes” no Ultra Trail Serra da Freita 2015 65KM:
3º Geral, Paulo Tavares (2º M-Sen) 09:12:26
5º Geral, Bruno Dias (2º M-40) 09:44:46

Texto de: Bruno Dias
Foto de: Cascais FotoTrail Running

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