Uma princesa no reino dos trilhos

Há algum tempo descobri uma entrada para um certo reino dos trilhos. Era uma entrada tapada com nevoeiro branco que só a alguns iluminados era dada conhecer.

Este reino é diferente do reino da estrada e do reino da montanha. Os habitantes usam vestimentas estranhas, complementadas por acessórios rebuscados. Movimentam-se a qualquer hora do dia ou da noite e correm com alegria. Prestam vassalagem a alguns príncipes e a algumas princesas mas até vestem melhor que eles e não se importam que eles corram muito e os deixem para trás. Procuram outras compensações ao longo dos percursos deste reino.
Os condados e caminhos deste reino são extremamente variados. Das serras verdejantes e fechadas de árvores e arbustos passamos para as montanhas nuas e frias de pedras violentas. Nos ribeiros cheios de água fria e vigorosa, bebemos o líquido que desaparece nos larós secos e gretados dos verões escaldantes. Nas planícies sem fim de ervas rasteiras, avistamos os muros e as paredes onde temos que fazer escalada. Nas subidas de terra vermelha onde o céu é o limite, trememos com a lembrança das descidas vertiginosas das lajes de xisto.

Os príncipes e princesas são também do mais variado que se possa imaginar. Há aqueles que correm mais que as gazelas e que se movimentam nos trilhos como coelhos saltitantes e que frequentam os pódios todas as semanas. Há aqueles que ostentam as vestes mais bizarras e que buscam em todas as lojas físicas e em todos as lojas do éter as novidades mais recentes para estarem prontos para as fotos artísticas. Há os que se equipam com todos os acessórios que já foram inventados para os trilhos e para todas as outras modalidades com medo que lhes possa faltar algo que não encontram nos treinos. As camisolas de alças e os simples calções pré-históricos são poucos quando comparados com as camisolas rebuscadas e com os calções compridos cheios de artimanhas para respiração e para abastecimentos volantes. Há os que são príncipes na arte de enfardar e que param em todos os abastecimentos em busca da sandes de presunto e da cerveja perdidas algures nas mesas. Há os que são magnânimos na distribuição de sorrisos e na oferta de simpatia a todos os intervenientes nas manifestações dos trilhos.

Mas a mole atlética provem de todos os estratos e camadas que se possa imaginar. O pedreiro junta-se ao gestor e a enfermeira ajuda a secretária. O especialista em relógios que programam quase tudo dá lições a quem nunca sonhou ter um relógio. A viajante que navegou nos trilhos do Polo Norte dá conselhos à amiga que só sai da aldeia ao domingo.

E é ao domingo, e é ao sábado e é à sexta e é ao feriado que este reino se anima sem tréguas, nos dias que correm. Todo o condado que se preze e que quer entrar no mapa organiza a sua corrida. Diz o povo e com razão, que não há fome que não dê em fartura. E quando observamos este reino a partir do Zepelim estacionado por cima de Vila de Rei é a loucura total. Os transmontanos correm para sul, os algarvios correm para norte, os pescadores correm para a fronteira, os raianos correm para o mar. Não há descanso possível, tantas são as solicitações que chamam pelos corredores de trilhos que se transformam em formigas que se cruzam todos os fins de semana.

Mas estas formigas laboriosas não trabalham no verão para descansar no inverno. Trabalham todo o ano, sem medo do frio, nem do calor, nem da chuva, nem do sol, nem da lama, nem do mato cerrado nem das praias tórridas. A azáfama não pode parar. A luta é constante e a busca do Santo Graal é levada a cabo semana após semana. E o Santo Graal de muitos e muitos habitantes deste reino é um número de quilómetros com três dígitos. É esse que está no seu horizonte, não se olhando a meios nem a condições para atingir o fim.

Mas são na verdade só alguns dos príncipes e só algumas das princesas que conseguem pegar no cálice com nobreza e com distinção. Uma das mais amadas neste reino é a Princesa dos Sorrisos que saiu do reino em setembro e venceu as 24 horas de Portugal em Vale de Cambra com uma distância percorrida de 172 km. A Carmen Henriques, amplamente conhecida por todos os habitantes do reino dos trilhos e por milhares de habitantes dos outros reinos, abalançou-se para uma empresa digna dos emissários gregos de outrora e saiu de lá vencedora.

Este caminho começou a desenhar-se há uma dezena de anos com o projeto de O Praticante que colocou a Carmen em terras de França e de Espanha a iniciar estas loucuras saudáveis dos três dígitos e que resultou num enorme sucesso além e aquém fronteiras.

Intitulando-se corredora e não atleta, não treina. Corre com prazer. E não corre quilómetros e quilómetros como vemos fazer por parte de tantos atletas. Trilha todas as semanas os caminhos do reino em busca das provas que lhe dão mais felicidade, ou porque é madrinha convidada, ou porque gostou da prova anterior daquele condado, ou porque este condado organiza pela primeira vez uma prova, ou porque o convívio com os amigos promete ser forte nestoutro condado. Mas durante a semana as suas corridas não demoram mais que quarenta minutos.

No entanto, nas provas, não se faz rogada. O dígito das dezenas superior a cinco e os números com três dígitos são tratados por tu, como faz uma verdadeira princesa. Encara com destemor distâncias e terrenos difíceis para os comuns corredores. Já fez 100 km em Millau, 101 km em Ronda, 150 km nos Pirinéus, 260 km na Costa Brava, 100 milhas no Ehunmilak, 60 km em Barrancos, 60 km na Turdetania, 80 km na Arrábida, 100 km na Serra de São Mamede, 50 km no Piódão, 115 km em Condeixa, várias vezes 43 km de Melides a Tróia, e isto só para falar só em algumas.

Nas suas palavras podem ser descobertas uma força interior e uma convicção que são corroboradas pelas prestações nas provas dos trilhos e estradas e praias e montanhas de todos os reinos. Nestas provas, transforma o normal sofrimento em sorrisos e simpatia que espalha por quem assiste e por quem fotografa. Confessa que quando se sente cansada, descansa a caminhar um pouco, acumulando energia que precisa para, minutos depois, se lançar à conquista da torre de menagem do condado em questão. Nunca teve uma desistência apesar dos grandes desideratos que se propôs realizar e que, um após outro, sempre foi vencendo com a resiliência que lhe é tão própria.

carmenTem uma capacidade invulgar para interagir com todos e distribui comentários alegres à esquerda e à direita, bem como palavras de apoio que animam as almas de quem percorre os mesmos caminhos. Todos a reconhecem e todos querem dar uma palavra à Princesa dos Sorrisos para receber aquilo que lhe dá o cognome, seja quando passam por ela seja quendo ela passa por eles.

Tornou-se, há alguns meses, embaixadora da Run Is a Gift, loja on-line de venda de produtos para atletas que ajuda crianças do Quénia e, na sequência desta parceria, pôs em prática a ideia de ajudar uma instituição de apoio social da zona onde se realizaram as 24 horas de Portugal. Vibra alegremente e alaga os seus olhos de felicidade ao comunicar que conseguiu angariar uma verba que não julgou possível quando a ideia surgiu, e ao falar dos seus “amigos” de Vale de Cambra que apesar de todas as suas limitações mentais e físicas estiveram presentes nessa prova e lhe ofereceram um piquenique logo após a conclusão da mesma.

Apesar de todas estas vertentes preencherem uma vida, os súbditos estão ansiosos por terem o seu Príncipe dos Sorrisos. A Carmen diz, na Terra, que o seu príncipe existe no Éter e que é, acima de tudo, pragmática. A sua vida diária não é fácil, passa por educar a sua princesinha loira, passa por cuidar de uma casa a solo, passa por trabalhar por turnos e passa, por vezes, por fazer provas sem dormir na noite anterior. A existência do príncipe imaginário é um Santo Graal que se junta aos seus outros, que reforça a sua força interior e que é um elixir para a sua alma. Na verdade todos concordam que um Príncipe dos Sorrisos só pode ser imaginário, tal é a singularidade da sua princesa, e não se mostram demasiadamente preocupados. Exatamente como a própria Princesa dos Sorrisos.

Texto: João Carvalho Lopes
Fotos: Miguel David

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